Um exército estimado em cerca de 8 milhões de brasileiros trava uma batalha particular. O objetivo: a superação de milhares de candidatos a cada nova seleção para conquistar uma vaga no setor público. Os chamados concurseiros vivem em um mundo próprio, cercados de livros, apostilas e provas. O grupo nunca foi tão grande. Com o número crescente de seleções abertas para novos servidores, em especial na esfera federal, a milícia só se avoluma — este ano, estima-se um crescimento de 30% em relação a 2008.

Para retratar esse universo, Zero Hora apresenta até quarta-feira personagens e histórias de vida que resumem o perfil dos novos e dos futuros servidores públicos. Eles retratam um momento ímpar no mercado de trabalho brasileiro.

Não há conforto nem a concentração que o momento exigiria. O espaço exíguo do micro-ônibus é dividido por 23 pessoas de diferentes idades e expectativas, mas o destino e o objetivo são um só. O destino: Florianópolis. O objetivo comum: a seleção para vagas ao Tribunal Regional Eleitoral (TRE) de Santa Catarina. Serão 15 horas de viagem, permeadas por sobressaltos, entre Rio Grande, quase no Extremo Sul do Estado, e a capital catarinense. Além dos 23 concurseiros, que sacolejam atrás do sonho da estabilidade, segue com eles uma equipe de Zero Hora.

Entre os candidatos, há os que tentam estudar no início da viagem e da madrugada, ignorando os solavancos, mas são vencidos pelo cansaço. Lá fora, a chuva e as rajadas de vento açoitam o veículo.

— Vou a qualquer lugar para alcançar meu objetivo. Viajar em uma noite como essa é só mais um obstáculo — encoraja-se Sérgio Benites, 45 anos, agente de trânsito em Rio Grande.

O amanhecer vem acompanhado do arrefecimento da chuva, mas a apreensão não fica para trás. A jornada segue pela temida BR-101, uma estrada crivada de desvios, obras e tráfego pesado de caminhões, uma combinação que deixa muitos pelo caminho. A exemplo da saga em busca da aprovação, uma linha de chegada inalcançável para a maioria.

— A viagem é massacrante, mas vale a pena. Tenho a meta de, em três anos, passar em um concurso para melhorar de vida — acredita Carlos Eduardo Behrend, 30 anos, colega de trabalho de Benites.

Os dois são parte de um exército que não mede esforços para vencer a batalha pela estabilidade. Até tempos atrás, um crachá de servidor público como objetivo era visto como sinônimo de falta de ambição e mesmo de baixa qualidade profissional. As definições sofreram uma reviravolta nos últimos anos. Ter o serviço público como meta virou referência de dedicação, alta competitividade e perspectiva de carreira promissora.

Estabilidade e bons salários atraíram para os concursos públicos cerca de 6 milhões de brasileiros em 2008. Neste ano, pelas contas da Associação Nacional de Apoio aos Candidatos (Anpac), o batalhão concurseiro deve ter suas filas encorpadas em mais 2 milhões de pessoas. Assim, até o final de 2009, ele deve contar com 8 milhões de recrutas.

A conquista da almejada segurança profissional passa por um trajeto longo, cheio de obstáculos e angústias até a aprovação. Quando se fala em trajeto, a expressão é, por vezes, literal. Como foi para os 23 concurseiros de Rio Grande e de Pelotas, a caminho de Florianópolis, conduzidos pelo já experiente José Alves Martins Neto.

Número de vagas federais cresceu

Na cadeia do negócio por trás dos concursos, Martins Neto descobriu aos poucos como ganhar dinheiro com o sonho que embala esses milhões de brasileiros. Primeiro, vendia polígrafos. Depois, agregou a organização de viagens aos locais das seleções. Afinal, concurseiro que é concurseiro vai aonde o concurso está.

— As excursões para as provas aumentaram muito nos últimos dois anos. Só em 2009 fiz cerca de 50 — contabiliza ele, um gráfico ambulante que aponta para o crescimento das vagas abertas no setor público nos últimos anos.

Explicar o atual interesse sobre as seleções públicas é razoavelmente simples: o país nunca teve tantas seleções abertas quanto nos dois últimos anos. Pelas regras desse mercado, quanto maior a oferta, maior a procura.

Entre 2003 e 2007, segundo dados do Ministério do Planejamento, a média de autorizações para concursos públicos federais foi de 19 mil vagas por ano. Em 2008, o número mais do que dobrou: 43 mil autorizações. O crescimento nas vagas não significa que as aprovações ficaram mais fáceis. Estão mais concorridas do que nunca. É mais difícil do que a viagem. É pior do que vencer campeonato.

Torcedor xavante, João Francisco Cardoso Collares, 28 anos, já acertou várias bolas na trave. Formando em Direito, contabiliza 10 concursos em que viu a classificação passar raspando por apenas um ponto, uma questão ou critérios de desempate.

O desempenho, ao contrário do que pode parecer, não abala Collares, integrante de torcida organizada e assíduo nos jogos do Brasil, de Pelotas. Na condição de estudante, prestava concursos só para vagas de nível médio.

— Era só para pegar ritmo. Estou acumulando conhecimento e desenvolvendo o método — explica ele, encarando a situação como um treino para as próximas seleções que requerem diploma universitário.

Como se disputasse um campeonato, dando força à torcida no estádio munido de seu amuleto, ele adotou como ritual fazer as provas fardado com a camisa do time do coração ou da torcida Máfia Xavante.

— É por isso que fica sempre por um ponto — brinca o amigo e companheiro de jornada José Américo Júnior, 25 anos, torcedor do rival Pelotas, fazendo uma relação com a quase ascensão do rubro-negro à Série B do Brasileirão nos últimos dois anos.

Para Collares, o jogo está só começando, sem data para o final da competição:

— Concurso não se faz para passar. Se faz até passar. A frase é de um amigo, hoje advogado da União.

Já em Florianópolis, apesar de não conhecer o litoral catarinense e de estar hospedado a 100 metros do mar, ele abre mão de se refrescar nas águas verdes e mornas de Canasvieiras após a cansativa viagem para dar mais uma conferida no conteúdo da prova da tarde seguinte.

R$ 10 bilhões movimentados

Quem viaja às vezes pode não voltar com a aprovação na bagagem, mas pode encontrar ali seu destino. É o caso de Sérgio Benites, um dos integrantes da excursão, citado no início do texto. Ele conheceu a mulher em uma viagem, também a Santa Catarina, para uma seleção de professores em 1986. Aquele casamento deu certo, mas ele não se acomodou. Benites segue na busca por estabilidade profissional.

— Vou até passar. Para todos os que saírem de Tribunais Regionais Eleitorais, em qualquer Estado, eu vou. Concurso é perseverança. Não adianta desanimar — diz ele, concursado como "cinzinha", apelido dos agentes de trânsito em Rio Grande.

Sem perder de vista seu sonho, Benites aproveita cada minuto para estudar. Até nos momentos que deveriam ser de lazer:

— Estudo todos os dias, sábados e domingos. Até na praia. Levo uma cadeira e estudo em aulas em vídeo e áudio no celular.

Antes de traçar o objetivo da aprovação em um cargo de bom salário, ele já havia tentado ganhar a vida como garçom em Portugal e microempresário em Rio Grande.

Para o grupo, e para todos os outros milhões de candidatos, o juiz federal especializado em seleções públicas William Douglas vislumbra boas expectativas. Douglas crê que a fase de bonança na abertura de vagas continue. Além da exigência legal de substituições de terceirizados em âmbito federal até 2010, existem boas perspectivas com a reposição de aposentadorias.

— Todo ano se aposentam entre 300 mil e 400 mil servidores. O boom vai pelo menos até 2018 — calcula ele, conhecido como guru dos concursos, aprovado em seis grandes processos, além de ser palestrante e autor de quase uma dúzia de livros sobre o tema.

O projeto de vida de um concurseiro exige, além de sacrifício, investimento. A Anpac estima que os concursos movimentaram R$ 10 bilhões em 2008. Entram na projeção desde gastos com inscrições, cursos preparatórios e livros até transporte e alimentação fora de casa no período de estudo. Dividida pelas 6 milhões de pessoas que participaram das provas, a cifra equivale a um gasto médio anual de R$ 1,6 mil por candidato.

Se vale a pena o investimento? É cedo para perguntar aos 23 viajantes destas páginas, que ainda esperam pelo resultado. A viagem, para eles, pelo menos esta, só terminará com a divulgação da lista dos aprovados.

Público X privado

Segundo a Advocacia-Geral da União, pouco mais de 2 mil servidores federais foram exonerados desde 2003 em um universo de cerca de 1 milhão de profissionais — índice de 0,2%.

No setor privado, o turn over (média entre demissões e admissões) gira em torno de 13,1% na indústria e de 26% no comércio e nos serviços, conforme pesquisa da Associação Brasileira de Recursos Humanos. 

Fonte:  Jornal Zero Hora

 

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